Biosofia
Para uma nova compreensão da Vida, do Universo e do Homem
Buddhi - A intuiçãoIntuição é um daqueles termos a que se associam os significados mais díspares e até contraditórios, seja na linguagem comum, seja nos domínios da filosofia e da psicologia ou, até, dos meios ditos espiritualistas. Propomo-nos aqui elucidar o seu conceito, tal como é entendido no âmbito da Sabedoria Esotérica 1, embora com algumas referências a outras fontes que não se catalogam habitualmente nesse âmbito. Esperamos, assim, diferenciá-la de significados menos próprios e mais banais que lhe têm sido atribuídos, caracterizá-la com rigor e amplitude, e colocá-la no devido lugar, que corresponde a uma das mais maravilhosas, elevadas e frutíferas vivências de que o ser humano é capaz.Relacionando a Intuição com Buddhi, procuraremos também ver o significado e algumas implicações deste último termo, que justifica a sequência na ordem alfabética deste conjunto de artigos, iniciado no número anterior com Alma. A Intuição A intuição é a faculdade que permite aceder a uma sabedoria íntima, real e essencial, adveniente do contacto directo com o âmago, com a realidade, com a natureza íntima dos seres e dos fenómenos. Tal só pode ser concomitante da vivência de um Amor inegoísta, forte, lúcido e que não se confina à própria pessoa e ao que lhe está próximo; de um Amor transpessoal, vigoroso, desinteressado, e dirigido ao Todo em cada uma das suas partes. A intuição representa a fonte do verdadeiro discernimento entre o Bem e o Mal, entre a Verdade e o Erro, entre o Certo e o Incorrecto, e a possibilidade de uma sabedoria real e transtemporal (distinta de um conhecimento superficial e baseado na sempre mutável ilusão sensorial). Ela implica um prévio e diligente desenvolvimento mental, pelo menos para que possa tornar-se confiável e relativamente frequente. No entanto, a simples actividade analítica e de coligação de factos, própria do intelecto, não propicia essa clareza exacta, esse conhecimento certeiro e fulgurante, essa penetração na realidade essencial do Universo, essa luminosa consciência espiritual, essa compreensão unificadora e abarcante próprios da Intuição. A intuição é o traço de união entre o pessoal e o universal, o diverso e o uno, a matéria e o espírito; é o entendimento que é beleza e que é ciência, que é certeza e que é criatividade, que é poder e que é serenidade, que é permanência e que é descoberta. É ela a força do pioneiro, a inspiração do génio, a fulgurância do criador: na Arte como na Ciência, na Religião como na Filosofia, na Política como em qualquer outro domínio em que o esforço de conhecimento, de progresso, de criatividade, de aperfeiçoamento e de serviço ao bem geral possa ter lugar. Uma enorme lista dos maiores vultos da História da Humanidade deixou expressamente afirmado que a intuição foi a luz fulgurante que lhes abriu o caminho para o mais importante das suas obras. Face ao exposto, compreende-se que a verdadeira Intuição constitua algo de ainda relativamente raro na Humanidade, sendo lamentável que se vulgarize a referência a esse vivido quando estão somente em causa premonições, pressentimentos, instintos, “sensações muito fortes”. Chegar a ser realmente intuitivo é o resultado de um longo e persistente esforço evolutivo, que pressupõe um grande desenvolvimento mental prévio - não apenas nos seus níveis de concretude mas também nos mais subtis. A Natureza não opera por saltos e não se passa directa e consistentemente da emoção pessoal para o Amor-Sabedoria transpessoal (Intuição) sem que esteja bem consolidado o grau intermédio - ou seja, o Mental. Buddhi BUDDHI é uma palavra sânscrita, usada em diversas escolas de filosofia-ciência espiritual hindu, e cujo significado é geralmente traduzido por “sabedoria, inteligência, entendimento, discernimento”. No movimento ocultista moderno, ou seja, espoletado a partir de 1875 pelo valoroso esforço e magnífica obra da co-fundadora da Sociedade Teosófica, Helena Blavatsky, com todas as suas ramificações, encontramos uma síntese magnífica das genuínas tradições espirituais de todos os povos. Quando se trata de explicar o sistema ocultista a europeus ou americanos, decerto que é importante encontrar as palavras adequadas nas tradições mais ocidentais, nomeadamente no Ocultismo Egípcio, na Cabala, no Gnosticismo, na antiga filosofia grega (Pitágoras, Platão, Anaxágoras, Empédocles, Plotino…), no Cristianismo - em larga medida conformado a partir dos quatro materiais anteriormente referidos, bem como dos ensinamentos e práticas dos Essénios, dos Ebionitas, dos Nazareus - ou até de grandes Filósofos e Místicos da Idade Média (Dionísio Pseudo-Aeropagita, Meister Eckart…), Moderna (Giordano Bruno, Spinoza, Leibniz, Jacob Boehme…) ou Contemporânea (Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Schoppenhaeur…). No entanto, dada a penetração e subtileza metafísica da espiritualidade hindu, bem como a perfeição maravilhosa da língua sânscrita, recorre-se frequentemente a termos dessa origem - entre eles, Buddhi 2. No hierarquia septenária dos Princípios humanos 3, Buddhi é o sexto, contando de baixo, ou seja, o segundo mais elevado (a seguir a Atman). Serve-lhe de veículo, de núcleo individualizador e de consciência de relação. Corresponde ao Ruach da Cabala. Recordemos esses 7 Princípios (os números à esquerda, indicam as duas formas possíveis de contar, do mais elevado para o mais denso ou vice-versa).
Como em todo o Cosmos, de que o Homem, de acordo com a Lei das Analogias, é feito à imagem e semelhança, temos uma Unidade Primordial (e, também, final, derradeira), que se diferencia em dois pólos, e, “em seguida”, numa trindade - um terceiro aspecto, resultando necessariamente da união de dois pólos, um positivo (+) e o outro receptivo (-) -, que depois se faz um septenário. Atman, do nosso ponto de vista, é Espírito Puro e Uno. Precisa, portanto, de um véu ou veículo com o qual se possa relacionar e, através dele, relacionar-se com a multiplicidade. Gera-se, assim, a Díade Superior ou Monádica: Atma-Buddhi. Entretanto, mesmo Buddhi é demasiado excelso e puro para se manifestar directamente nos mundos inferiores. Tem, necessariamente, de o fazer através de Manas (vemos, uma vez mais, a indispensabilidade de um intelecto desenvolvido para que uma compreensão e vivência superior, búddhica, intuitiva, se possa expressar no ser humano). E, por sua vez, um raio ou fragmento de Manas, unindo-se a Kama - a força do desejo que atrai para a encarnação, para a actividade nos mundos mais densos -, está na origem de cada uma das personalidades encarnativas, ou seja, do Quaternário Inferior. Como veículo receptivo de Atman, assume Buddhi uma polaridade ou natureza feminina. É a Alma (Buddhi) do Espírito (Atman): a Alma Espiritual 5. É a Prakriti (matéria, substância) de Purusha (espírito): “Buddhi é o princípio determinativo proveniente da Prakriti em consequência da involução do Purusha” 6. É a esposa do Divino: “… nas antigas religiões e filosofias, o Deus interno sempre foi chamado o Divino ou Deus - masculino; a Consorte, a Buddhi do Atman, sempre foi considerada como feminina” 7. Numa carta dirigida ao Sr. Sinnett, o Mestre Morya relaciona o “sexto Princípio” (Buddhi) com a “matriz do Grande Princípio Passivo” 8. Compreende-se, assim, por analogia, a correspondência que aparece nas obras de Helena Blavatsky e de outros bons autores: Buddhi (tal como Atman) está geralmente adormecido e fora ou além do ser humano 8. ÃL;� medida que vai sendo despertado 9 pode outorgar a Consciência Espiritual, o verdadeiro Entendimento, a Iluminação, a Sabedoria que está livre da ilusão fenoménica e sensorial. É a medida desse despertar que marca o grau da evolução espiritual. Voltamos novamente a citar uma carta do Mestre Koot-Hoomi: “… nada nos compele para alguém do mundo, excepto a sua evolução espiritual. Um homem pode ser um Bacon ou um Aristóteles em acúmulo de conhecimento e, ainda assim, não nos atrair para a sua corrente, se a sua força estiver tão-somente confinada a Manas. O supremo poder reside em Buddhi (…) Manas, simples e isolado, é de um grau inferior e de natureza terrena; deste modo, os maiores vultos da Terra podem ser insignificantes nesta perspectiva em que a verdadeira grandeza é aferida exclusivamente pelo padrão do desenvolvimento espiritual” 8. Quando, porém, Manas se liberta do jugo de Kama, o desejo egoísta, e se deixa conduzir pela lúcida inspiração de Buddhi, ele pode então aceder à verdadeira Sabedoria. E, a propósito de Sabedoria… O Budismo pré-budista Em 1883, Alfred P. Sinnett publicou “O Budismo Esotérico” 10. A edição desse livro foi um marco de grande importância, visto ter consignado a primeira tentativa de expor sistematicamente alguns dos princípios da Ciência Esotérica, a partir dos conhecimentos que ao autor haviam sido expostos pelos Mahatmas Koot-Hoomi e Morya, e por Helena P. Blavatsky (e, mais esporadicamente, por Subba Row e pelo Coronel Olcott). O título original em Inglês foi “Esoteric Buddhism”, um título infeliz que deu origem a um sério equívoco: muitos julgaram que a Teosofia era a vertente esotérica, ou seja, mais oculta e profunda, da religião budista. Ora, descontando já o facto de que o Budismo não é uma religião no sentido que no Ocidente se atribui à palavra; deixando ainda de lado o rigor de que tudo aquilo que é publicamente ensinado deixa, por essa mesma circunstância, de ser esotérico (tornando-se exotérico), prejudicou-se a desejável compreensão de que a Sabedoria Oculta realmente subjaz a todas as religiões, filosofias e sistemas espirituais dignos desses nomes - entre os quais, um deles é, evidentemente, o apresentado pelo Senhor Buddha (Siddharta Gautama). Na Introdução da sua obra “A Doutrina Secreta” 11 - que mencionamos tantas vezes na “Biosofia”, com a intenção de, por esse modo, divulgarmos o que deve ser conhecido, mesmo quando poderíamos facilmente usar as nossas próprias palavras 12 -, Helena Blavatsky tentou desvanecer os equívocos e, ao mesmo tempo, inculcar noções que, neste contexto, encontram absoluta pertinência. Citemos alguns excertos: “Esoteric Buddhism é uma obra excelente, com um título pouco feliz (…). A responsabilidade pelo erro cabe àqueles que, tendo sido os primeiros a chamar a atenção pública para os assuntos desta ordem, não se lembraram de advertir que há uma diferença entre â��Buddhismâ�™, sistema moral e religioso fundado por Gautama Buddha - título este que significa â��o iluminadoâ�™ - e â��budhismâ�™, de Budha, conhecer (…) embora depois tivéssemos feito todo o possível por corrigir o erro. Era, aliás, fácil elidir a confusão: bastaria rectificar a grafia da palavra, escrevendo-a com um só â��dâ�™ e observando que â��Buddhismâ�™, religião, devia antes revestir a forma e pronunciar-se â��Buddhaismâ�™. (…) A â��Religião-Sabedoriaâ�™ é a herança comum de todas as nações do mundo. (…) ÃL;�di ou ÃL;�dhi Budha, o Uno, ou a Primeira e Suprema Sabedoria, é um termo usado por ÃL;�ryâsanga nos seus tratados secretos, e também actualmente por todos os místicos budistas do Norte. É uma palavra sânscrita, e uma denominação dada pelos primitivos Ários à Divindade desconhecida; (…) Significa a Sabedoria Absoluta, e Fitzeward Hall traduz ÃL;�dhi-BhÃL;�ta como a â��causa primordial incriada de todas as coisasâ�™. Evos e evos se devem ter passado antes que o epíteto de Buddha viesse, por assim dizer, a ser humanizado, aplicando-se aos mortais, e apropriado finalmente ao indivíduo cujas virtudes e sabedoria incomparáveis o tornassem digno do título de â��Buddha da Sabedoria Imutávelâ�™. Bodha significa a posse inata da inteligência ou entendimento divino; Buddha, a sua aquisição pelos esforços e méritos pessoais; e Buddhi é a faculdade de conhecer, o canal por onde o conhecimento divino flui até ao Ego, o discernimento do bem e do mal, e a alma espiritual, que é o veículo de Atman”. No mesmo sentido, se pronunciou o Mestre Koot-Hoomi: “Muitos preferem chamar-se budistas, não porque a palavra se vincule ao sistema eclesiástico edificado sobre as idéias básicas da filosofia do nosso Senhor Gautama Buda, mas por causa da palavra sânscrita Buddhi: sabedoria, iluminação” 8. A Correspondência Buddhi / Intuição Tanto nos escritores que abordam directa e estritamente a filosofia-religião hindu, como na primeira vaga do movimento ocultista/teosófico moderno, o termo Buddhi raramente, ou mesmo nunca, aparece traduzido ou caracterizado como Intuição. Entretanto, numa segunda geração e terceira geração na Soc. Teosófica (designadamente, em autores como Annie Besant, Leadbeater, Jinarajadasa, Geoffrey Hodson, I. K. Taimni) ou noutros movimentos e trabalhos literários (Alice Bailey) e, nós próprios, no Centro Lusitano de Unificação Cultural, tal associação aparece clara e repetidamente estabelecida. Mesmo em autores extremamente cuidadosos em conservar a classificação e caracterização dos Princípios Humanos originariamente transmitida por Helena Blavatsky e pelos seus Mestres, bem como através da já referida obra “O Budismo Esotérico”, é feita essa correspondência. É o caso, por exemplo, de Gottfried de Purucker, que sustenta expressamente “O que é este princípio búdico? (…) É intuição, é o órgão do conhecimento directo, é a vestimenta da centelha divina dentro de nós, que não só conhece instantaneamente a verdade mas que também a comunica, se de facto as barreiras não forem demasiado densas e pesadas entre ele e as nossas mentes receptivas”; “O nosso Buddhi individual é aquilo que nos dá intuição, e insight e sensibilidade e delicadeza e a habilidade de responder rapidamente ao sofrimento e à dor dos outros” 7, de Arthur Robson 13 ou de Geoffrey Barborka 14. Tratar-se-á de uma interpretação incorrecta ou abusiva? Significados diversos de “intuição” Depende do que entendermos por intuição. Na linguagem vulgar, infelizmente reproduzida em meios esotéricos e espiritualistas, usa-se esta palavra para designar qualquer vaticínio, qualquer estado alterado de consciência, qualquer reacção instintiva, qualquer ditame sobre - tantas vezes - um assunto que (ainda quando a solução fosse correcta) não mais teria do que um medíocre alcance e interesse. Nesta acepção, a (suposta) intuição seria algo de muito diferente do conceito que referenciámos no início deste artigo e seguramente que pouco ou nada teria a ver com a realidade (sublime) de Buddhi. Pelo contrário: inúmeros males têm advindo dessas pretensas intuições. Outras vezes, alega-se que se teve “uma intuição”, quando uma questão se afigura difícil, cansativa ou demorada de resolver correcta e lucidamente, e é tomada uma opção impulsiva, emocional ou com base numa apreciação muito parcial. Também neste caso, se trata de algo de muito distinto do significado ocultista de intuição, que partilhamos e que expusémos acima, e necessariamente também distinto do conceito de Buddhi. Como já dissémos - mas é importante repetir -, uma intuição segura e que se manifeste, ao menos, com relativa frequência, implica e pressupõe um sólido desenvolvimento intelectual. Mais ainda: embora os grandes avanços no domínio do conhecimento e da criatividade se devam invariavelmente a intuições, estas não ocorrem no vazio e sem uma causa que as propicie; só no terreno mental previamente trabalhado (e tornado simultaneamente desperto e receptivo) por um esforço vigoroso e sustentado de “mais luz” 15, só depois da fadiga de um querer intenso e dedicado em prol de uma solução global, precisa e inegoísta, é que essa vivência solenemente religiosa 16 pode ter lugar. Novamente, os testemunhos coincidentes de tantos génios da história da Humanidade mostram que assim é. Lembramos a afirmação de Thomas Edison: “Um génio é feito de 10% de inspiração e 90% de transpiração”. Por seu turno, falando sobre a energia de Buddhi, assim escreveu o Mahatma Koot-Hoomi: “… latente quando está unido apenas a Atman, activa e irresistível quando está galvanizada pela essência de Manas, e nenhuma das impurezas de este último se mescla com aquela essência pura para abafá-la com a sua natureza infinita” 8. A “Intuição” na Filosofia Ocidental Se, enfim, voltarmos os olhos para a filosofia ocidental, verificamos a pluralidade de sentidos com que a palavra intuição tem sido utilizada. Por exemplo, fala-se com frequência numa espécie de “intuição sensível” que nos permite identificar imediatamente este ou aquele objecto ou fenómeno. É algo de bem distinto do significado esotérico de “intuição”. Bergson enfatizou muito a relevância da intuição, e não se pode negar a importância das suas concepções; mas só parcialmente são coincidentes com as da filosofia esotérica, mesmo neste particular. A sua confusão entre instinto e intuição é, do ponto de vista ocultista, manifestamente errónea, uma vez que o primeiro pertence à região do subconsciente e a segunda à região do supraconsciente 17. Traduções de obras de Kant (v.g. “Crítica da Razão Pura” e “Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura”) para outras línguas empregam a palavra “intuição” mas de forma muito discutível, visto que o termo alemão Anschauung significa literalmente “olhar para” ou “visão” 18. Não obstante, a referência a Kant justifica alguns comentários que reputamos de interesse. O seu uso da expressão “Razão Pura” 19, recorda-nos que, na literatura sobre sabedoria esotérica, vários autores - nós próprios, aliás - identificam Intuição, Buddhi e Razão Pura: ” … Buddhi, a razão pura ou mais elevado entendimento, cuja expressão é sabedoria, o resultado da união do conhecimento e do amor” 20. Por outro lado, a sustentação kantiana da impossibilidade de conhecer as coisas-em-si (ficando o conhecimento limitado ao fenómeno), ajuda-nos a compreender a distinção entre a cognição formal e condicionada (pelo separatismo egotista e pela percepção sensorial), baseada na dualidade Sujeito/Objecto, e a faculdade búddhica ou intuitiva, em que se verifica uma (quase) fusão entre esses dois pólos. Lembramos o início de um soneto de Camões: “Transforma-se o amador na coisa amada / pela virtude do muito imaginar” 21. Em várias figuras proeminentes da chamada “Filosofia Ocidental”, a noção de intuição, muitas vezes designada de outro modo, surge mais ou menos claramente: Plotino, Santo Agostinho, Malebranche, Fichte, Schelling, Schopenhauer… até mesmo Descartes e Leibniz (com a sua “luz da consciência perfeita”, o “conhecimento interno”). Seria muito longo e, para grande parte dos leitores, provavelmente árido e desinteressante, considerar todas essas concepções; de modo que nos deteremos apenas, e de modo sucinto, em dois homens admiráveis: Platão e Spinoza. Platão Comecemos pelo grande sábio grego, aludindo à sua concepção da anámnesis ou reminiscência, e dos Eide (ou Ideias, conceitos), tal como aparece no “Ménon”, na “República”, no “Fédon”, no “Timeu” e no “Fedro”. Pressupõe, coincidentemente com a Ciência Esotérica, uma natureza imortal e preexistente no ser humano. A Alma humana, antes de reencarnar, está em contacto directo com essa Ideias (arquetípicas) dos objectos e fenómenos sensíveis, Ideias essas que são realidades 22 na Mente Divina ou Mente Cósmica (equivalente a Mahat, no misticismo e ocultismo hindu). Entretanto, mesmo quando encarnada, através da faculdade da razão ou Nous, e por meio de um método adequado, pode aceder a essas Ideias, através da anámnesis. Tal permite um Conhecimento puro. Existe um nous cósmico (a Mente Cósmica, Demiúrgica), cujas leis ordenam o universo (”Leis”, 966e) e um nous imanente nas almas humanas. Com efeito, no “Timeu” (51e) sustenta-se que o Nous humano participa do Nous divino, visto que este é uma propriedade essencial dos deuses (que colectivamente integram a Mente Demiúrgica), partilhada por alguns homens (os que já sejam capazes de se alcandorar a esse nível). Compare-se com a definição de Buddhi apresentada por H. P. Blavatsky no “Glossário Teosófico”: “Alma ou Mente Universal. Mahabuddhi 23 é o nome de Mahat; também designa a alma espiritual no homem…”. Se acrescentarmos a isto a identificação feita pela mesma autora no seu livro “A Chave da Teosofia” entre o Nous (tal como entendido por Platão) e Buddhi-Manas, fica ainda mais claro que, sob diferentes nomes, as concepções fundamentais são exactamente as mesmas. Spinoza Passemos agora, um pouco mais longamente, por Spinoza. A sua obra é extraordinária e, a nosso ver, constitui um verdadeiro modelo de bem pensar (um magnífico exemplo de que pode haver uma ciência de pensar correctamente). Todas as citações que fazemos dele são retiradas da sua magistral obra “Ética” 24; pedimos ao leitor que tenha previamente em conta que a noção de Deus em Spinoza, como, aliás, no domínio de qualquer Sabedoria Espiritual digna desse nome, é diferente da que é habitual ponderar-se. Vale a pena começar com a Proposição XXIII da Parte V - “A Alma humana não pode ser absolutamente destruída juntamente com o corpo, mas alguma coisa dela permanece, que é eterna” - corresponde à concepção ocultista 25 de que só a alma espiritual (Atma-Buddhi) e a alma humana (Buddhi-Manas) são imortais, o que não se verifica com a alma animal (Kama-Manas) -, e com o comentário de Spinoza, onde transparece uma concepção idêntica à de Platão sobre a reminiscência, a preexistência da Alma e a realidade das Ideias na Mente Divina: “… A Alma não sente menos aquelas coisas que ela concebe, ao compreender, do que aquelas que tem na memória. Efectivamente, os olhos da Alma, com as quais ela vê e observa, são as próprias demonstrações. Portanto, embora não nos recordemos de ter existido antes do Corpo, sentimos, no entanto, que a nossa Alma (…) do ponto de vista da eternidade, é imortal”. No escólio da Proposição XXIX da mesma Parte V, acrescenta-se: “As coisas são concebidas por nós, como actuais, de dois modos: ou enquanto concebemos que elas existem com relação a um tempo e a um lugar determinados, ou enquanto concebemos que elas estão contidas em Deus e que resultam da necessidade da natureza divina. Ora, as que são concebidas como verdadeiras, ou seja, reais, deste segundo modo, concebemo-las do ponto de vista da eternidade, e as ideias delas envolvem a essência eterna e infinita de Deus”. Continuamos a acompanhar a similitude de Platão e de Spinoza, quando vemos que este escreve: “… todas as ideias que existem em Deus, convêm inteiramente com os seus objectos (…); portanto (…), são todas verdadeiras”; “… em Deus, enquanto Ele constitui a essência da nossa Alma, existe uma ideia adequada e perfeita…” (demonstrações das Proposições XXXIII e XXXIV da Parte II) e “… um círculo existente na Natureza e a ideia desse círculo existente, a qual existe também em Deus, são uma e a mesma coisa, expressa por atributos diferentes. E, assim, quer concebamos a Natureza sob o atributo da Extensão, quer sobre o atributo do Pensamento, quer sobre outro atributo qualquer, encontraremos uma só e a mesma ordem” (Escólio da Proposição VII da Parte II). Na verdade, como se diz na Bíblia judaico-cristã, (a Sabedoria) “derrama-se de geração em geração nas almas santas e forma os amigos e intérpretes de Deus; porque Deus somente ama a quem vive com a Sabedoria” 26… Este nosso comentário evoca-nos a referência ao que Spinoza denomina “amor intelectual de Deus”, resultado necessário do que ele chama “terceiro género de conhecimento” (Corolário da Proposição XXXII da Parte V). A este género de conhecimento, que “procede da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento específico adequado da essência das coisas”, chama Spinoza, expressamente, “ciência intuitiva” (Escólio II da Proposição XL da Parte II) - denominação muito feliz e que coloca a intuição num nível de elevação e de rigor, ao invés das banais premonições e delírios emocionais com que é tantas vezes confundida. Assim, conclui Spinoza, “O terceiro género de conhecimento procede da ideia adequada de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas (…), e quanto mais nós compreendemos as coisas deste modo, tanto mais (…) compreendemos Deus; e, por conseguinte (…), a suprema virtude da Alma, isto é, o poder ou natureza da Alma, por outras palavras, o seu supremo esforço é compreender as coisas pelo terceiro género de conhecimento”, pelo que a “virtude suprema da Alma é conhecer a Deus (…) e deste género de conhecimento provém o maior contentamento que pode existir” (Demonstrações das Proposições XXV e XXVII). Este supremo contentamento “que pode existir” da Alma, recorda-nos o Anandamayakosha (o “envoltório de bem-aventurança”) da Vedanta, correspondente a Buddhi na classificação acima exposta (cfr. quadro comparativo no Volume I da “Doutrina Secreta”, de H.P.B., p. 201 da edição brasileira). A conformidade essencial da filosofia espinosiana com a Sabedoria Esotérica fica mais evidenciada se tomarmos em linha de conta que nem uma nem outra jamais aceitaram as concepções desvirtuadas de Deus ou do Divino. Para a Ciência Esotérica, o Divino é o Ser, o Bem e a Lei; é o 7o (ou o 7o e o 6o) Princípio do Todo, Macrocósmico ou Microcósmico, donde a identidade Brahman-Atman; ou, em termos de Manifestação, Brahman e Pradhana no Universo, e Atman-Budhi, o Eu Divino, no ser humano. Para Spinoza, só há uma substância, “Deus ou a Natureza”; Deus é o “Ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita”; mas, desses atributos, só dois nos são conhecidos: Pensamento ou Ideação e Matéria ou Extensão, por outras palavras, o pólo subjectivo e o pólo objectivo. Temos assim, mais uma vez, a correspondência com o misticismo e o ocultismo hindús: no que toca ao Macrocosmo, com Svabhavat, que é a essência ou espírito primordial da substância, Pai-Mãe do Universo Manifestado 27, ou Brahman-Pradhana (Parabrahman-Mulaprakriti no Imanifestado), que se diferencia mais como Brahma-Prakriti e, depois, se volve o Pensamento Divino, a Mente Cósmica (Mahat ou Maha-Buddhi) a dinamizar a matéria universal dos diferentes Planos (por meio de Fohat e do agregado de Dhyan-Chohans ou potências criadoras divinas) 28; e, no Homem, com Atman (o Self, o Eu Espiritual) e o seu véu feminino, Buddhi. Muitos dos filósofos da Era Cristã poderão ser melhor entendidos e revalorizados se percebermos que tiveram de acobertar esse conceito mais profundo do Divino sob a capa da terminologia usada na(s) Igrejas dominantes. Todas as perseguições e calúnias de que Spinoza foi objecto 29 - para não relatarmos já o caso extremo de Giordano Bruno - são, por si só, demonstrativas de quão difíceis foram, para as mentalidades mais lúcidas, esses tempos de negro fanatismo. Intuição / Buddhi (conclusão) Podemos compreender que na primeira geração do movimento ocultista pós-1875 se tivesse evitado relacionar Buddhi e Intuição. A disparidade de sentidos associada a esta última faz admitir que tal omissão inicial tenha sido sabiamente prudente. No entanto, ao longo deste artigo julgamos ter perpassado com clareza que existe um modo de conhecimento mais puro, sintético, real, criativo, elevado e essencial, do que o resultante das operações intelectuais comuns, estabelecidas a partir de dados sensoriais ou até de uma lógica formal dissociada de objectos e fenómenos “externos”. Essa faculdade não é, pois, a Manásica e, sim a Búddhica (ainda que imprimindo, depois, os seus resultados na substância mental, que os recebe e interpreta à sua maneira). Na terminologia ocidental, “intuição” é um modo possível de expressar essa sabedoria unificadora, cheia de exactidão, de vida, de criatividade e de amor. José Manuel Anacleto Presidente do Centro Lusitano de Unificação Cultural; Licenciado em Direito 1 Algumas obras onde a questão da intuição está - a nosso ver - bem tratada: “Luzes do Oculto” (Centro Lusitano de Unificação Cultural, Lisboa, 1a ed., 1998; 2a ed., 2002); “Sete Chaves” (idem, 1a ed., 1995; 2a ed., 1999); José Manuel Anacleto, “Transcendência e Imanência de Deus” (idem, 2002); C. Jinarajadasa, “A Nova Humanidade da Intuição” (Lisboa, 1938); Pietro Ubaldi, “A Grande Síntese” (Ed. Monismo, S. Vicente, 1958). 2 A este propósito, e sobre Buddhi, recomendam-se alguns livros em particular: “A Chave da Teosofia”, de Helena Blavatsky (Edições 70, Liosboa, 1978); “Glossário Teosófico”, de Helena Blavatsky (Ed. Ground, S.Paulo; “Auto-Cultura à Luz do Ocultismo”, de I. K. Taimni (Ed. Teosófica, Brasília, 1997); “Man and His Seven Principles”, de Arthur Robson (Theosophical Publishing House, Adyar, 1973). 3 Sobre os Princípios Humanos, ver o nosso artigo “A Constituição Integral do Ser Humano” , no o 6 da “Biosofia”. 4 Kama-Manas é condicionalmente (i)mortal, visto que dele perduram os pensamentos e emoções mais nobres. 5 Buddhi, sob a influência de Atman (Atma, Buddhi, pois) é a Alma Espiritual; Manas, sob a direcção de Buddhi (assim, Buddhi-Manas) é a Alma Humana; e Kama (ou Kama-Manas) é a Alma Animal. Ver o nosso artigo sobre a Alma no anterior número da “Biosofia”. 6 Iogue Ramacharaca, “As Doutrinas Esotéricas das Filosofias e Religiões da Índia” (Ed. Pensamento, S. Paulo, 1978). 7 Gottfried de Purucker, “Studies in Occult Philosophy” (Theosophical University Press, Pasadena, 1973). Da mesma obra, e a propósito, citamos um significativo excerto: “Atman, no início da manifestação, involucra-se (…) no que chamamos Buddhi. Este gera a mesma relação com Atman que Mulaprakriti tem com Parabrahman, ou que Pradhana tem com Brahman”. Em idêntico sentido - a natureza feminina de Buddhi - ver também a obra supracitada de Arthur Robson. 8 Cfr. “Lettres des Mahatmas M. et K.H. à A. P. Sinnett �, Adyar, Paris, 1990; trad. em Português, “Cartas dos Mahatmas para A. P. Sinnett”, Editora Teosófica, Brasília, 2001. Recomendamos também o utilíssimo livro de Carlos Cardoso Aveline “Alguns Temas Centrais das Cartas Recebidas dos Mahatmas” (Acção Teosófica, Brasília, 2002). 9 Embora, infelizmente, “o conhecimento para estar apto a activá-lo e usá-lo não seja geralmente detido” (Geoffrey Barborka, “H. P. Blavatsky, Tibet and Tulku”; Theosophical Publishing House, Adyar, 1974). 10 Traduções em Português: Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1916 (nesta, como em outra edições, o título é “Budhismo…”); Ed. Pensamento, S. Paulo, 1986. 11 Ed. Pensamento, S. Paulo, 1973. 12 Com, efeito, sentimo-nos no dever de contribuir para dar a conhecer obras com importância e mérito. 13 Na já referida obra “Man and His Seven Principles”. 14 Cfr. “Glossary of Sanskrit Terms” (Point Loma Publications, Inc, San Diego, 1972). 15 … As últimas palavras atribuídas a GÃL;�ethe. 16 O que não significa que a intuição só actue nos assuntos catalogados no domínio das religiões. Ela pode projectar luz em qualquer área do conhecimento e da criatividade. 17 Sobre esta questão, ver “Luzes do Oculto” (cit.) e também o livro de P. Ubaldi “Ascese Mística” (Fundapu, Campos, 4a ed. 1988). 18 Cfr. Bertrand Russel, “História da Filosofia Ocidental, Vol. II”, Círculo de Leitores, Lisboa, 1978. A relação de “ver” ou “visão” com intuição e com “Buddhi” poderia, no entanto, conduzir a interessantes considerações sob um ponto de vista esotérico. Deixaremos isso para outra oportunidade. 19 Que, em outras fontes, é definida como “razão intuitiva”. 20 Annie Besant e Bhagavan Das, “Sanâtana Dharma - An Advanced Textbook of Hindu Religion and Ethics”, The Theosophical Publishing House, Adyar, 2000 (3a ed. revista). 21 Importa não confundir imaginação com fantasia ilusória; sobre o conceito esotérico de imaginação criadora, V. “O Sétimo Círculo” (Centro Lusitano de Unificação Cultural, Lisboa, 1995). 22 E, daí, falar-se em realismo platónico no âmbito da teoria do conhecimento. 23 Maha significa “grande”. 24 Atlântida, Coimbra, 1960. 25 Cfr. o 1o artigo desta série “Esoterismo de A a Z” no o 13 da “Biosofia”. 26 Sabedoria, 7:29. 27 Nas “Cartas dos Mahatmas a A. P. Sinnett”, o Mestre Koot-Hoomi define Svabhavat deste modo: ” … o elemento único, para o qual o idioma inglês não tem nenhum termo. É, simultaneamente, passivo e activo, Essencia-Espírito puro na sua condição de carácter absoluto e em repouso; matéria pura no seu estado finito e condicionado”. 28 Sobre vários destes termos - Brahman, Pradhana, Brahma, Prakriti, Akasha, Fohat, Dhyan-Choans, remetemos para o nosso livro “Transcendência e Imanência de Deus” e para o “Glossário Teosófico”, de H. Blavatsky. No que respeita à sequência apresentada, veja-se “Mathematics of The Cosmic Mind”, de Gordon Plummer (Point Loma Publications, San Diego, e Theosophical Publishing House; Wheaton, Illinois). 29 Sobre Spinoza, V. o artigo de Alda Marques no o 10 da “Biosofia”. |
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sábado, 2 de outubro de 2010
Biosofia - Para uma nova compreensão da Vida, do Universo e do Homem
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